sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Porto Filosófico


«O aspecto moral da segunda cidade do país pouco se tem analisado; sobre ele declara-se, favorável ou hostilmente. /
O Porto divergiu de todo o tempo, nos sentimentos, no modo de pensar, nos hábitos de vida, do tipo exibido, como modelo, pela capital do país. Cioso da sua autonomia, existe entre o Porto e Lisboa uma velha rivalidade. /Como se verifica por toda a parte, mercê da benignidade do seu céu, normalmente azul, e do seu clima docemente temperado, o autóctone do sul é um homem de rua, falador, vivo, pouco tenaz; de carácter suave mas frouxo, ele é naturalmente propenso a viver mais do exterior, respirando abundantemente das circunstâncias ambientes, preso ao conjunto das pessoas pelos laços de uma solidariedade que o convívio intensifica. No norte, os longos invernos, as persistentes chuvas, a tristeza das cidades enlameadas não tornam fácil o conceito de Diderot: C'est beau, la rue. O carácter enrijece na disciplina da inospitalidade da natureza e a vida de família ganha na proporção em que os hábitos de rua se obliteram e deperecem. /A comprovação histórica verifica a indução, quando assinala na sinceridade das impressões dos viajantes, ainda os mais recentes, como Ch. de Mazade para Lisboa e Olivier Merson para o Porto, que a primeira destas duas cidades é uma cidade francesa e a segunda uma cidade inglesa». (Sampaio Bruno)

Quando afirma que a Renascença Portuguesa não poderia ter nascido senão no Porto, Fernando Pessoa está a reconhecer a superioridade intelectual dos portuenses em relação aos sulistas, dando razão à lei estabelecida por Oliveira Martins: o embate docarácter do norte, representado no Porto, com o carácter do sul, simbolizado em Lisboa, é explicado a partir de variedades de tipo étnico. Portugal é um país etnicamente dividido e a sua história pode ser reduzida a um confronto étnico entre o tipo celta do Norte e a etnia mourisca do Sul. E este confronto tem sido vencido por Lisboa que, através da centralização despótica do poder político, coloniza todo o território nacional, sacando-lhe todas as riquezas que canaliza para a capital e tirando-lhe todas as oportunidades de desenvolvimento económico e cultural. A história de Portugal vista como história da centralização lisboeta atinge o seu ponto culminante depois do 25 de Abril: o regime fascista usou o Benfica para colonizar as mentes dos portugueses, dando-lhes a ilusão de uma coesão nacional inexistente, mas o regime democrático - sobretudo com os governos de Cavaco Silva - deslocalizou todo o poder económico, financeiro, comunicacional e cultural do país para a capital, criando as condições necessárias para a crise profunda que vivemos no momento presente. Sampaio Bruno não acolhe cabalmente a tese de Oliveira Martins, preferindo justificar a cisão nacional a partir de diferenças económicas - o Porto burguês e liberal - e climáticas, tal como já tinha sido feito por Montesquieu: a inospitalidade da natureza atiça o desenvolvimento intelectual da mente portuense e enrijece o corpo para a luta de vida ou de morte (Hegel) contra o centralismo canibal lisboeta.

Heródoto, Aristóteles, Montesquieu e Jean Bodin já tinham insistido na influência directa do clima nos comportamentos humanos: «O grande calor debilita a força e a coragem dos homens, enquanto nos climas frios existe uma certa força do corpo e do espírito que torna os homens capazes de acções duradouras, difíceis, grandes e audaciosas». Montesquieu conclui que a cobardia dos povos dos climas quentes os torna escravos, enquanto a coragem dos povos dos climas frios os mantém livres. A servidão civil está, portanto, ligada ao clima: «Os homens (dos climas quentes) só são levados a executar tarefas penosas pelo medo do castigo». O clima frio conduz à liberdade e o clima quente à servidão. Na peugada de Bodin, Sampaio Bruno considera que a inospitabilidade da natureza é compensada pelo aperfeiçoamento das faculdades mentais e cognitivas superiores: os homens dos climas frios vivem mais da interioridade do que da exterioridade. O recolhimento interior aguça o desenvolvimento do espírito. A oposição entre o Norte e o Sul de Portugal converte-se assim numa oposição entre o homem interior e o homem exterior. Sampaio Bruno recorre à arquitectura para explicar estadiferença de carácter: a remodelação de Lisboa pelo Marquês de Pombal - uma iniciativa do Estado - uniformizou as edificações em andares, promovendo a prosmicuidade de uma escada comum e tornando de tal modo o domicilio odioso que os seus habitantes são levados a preferir a rua. O homem exterior é o homem da rua que, tendo «o dia garantido pela sinecura do emprego público», tende a ser imprevidente e frouxo. A vida fácil do lisboeta, garantida pelo emprego público e pela iniciativa do Estado, conduz à regressão cognitiva e à atrofia dos órgãos mentais. Sampaio Bruno apreende um conceito bio-antropológico fundamental: o homem exterior desenvolve uma intolerância para com o desprazer que induz a perda da capacidade de empreender trabalhos difíceis e o desenvolvimento da exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam. A necessidade incoercível de satisfação converte o homem exterior em presa fácil dos produtores e das empresas comerciais: o homem exterior é umconsumidor que não tem consciência do facto de ser escravo das compras a crédito e o seu estilo de vida é capturado pelo tédio mortal. No Porto nada disto sucedia no tempo de Sampaio Bruno, porque na Cidade Invicta o pão tinha de «ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio»: o estímulo da iniciativa do portuense era aguçado pelas actividades comerciais e as eventualidades da hora seguinte redobravam «o espírito sobre si mesmo, imprimindo ao carácter seriedade e dando-lhe ao mesmo tempo maleabilidade e resistência». A análise do carácter do Norte e do carácter do Sul realizada por Sampaio Bruno enquadra-se no âmbito da interpretação económica da história fundada por Karl Marx: Sampaio Bruno sintetiza-a neste preceito irremediável -Primum vivere, deinde philosophari. O homem precisa de comer antes de filosofar: a compreensão de toda a superstrutura das instituições políticas e jurídicas exige o estudo da estrutura económica. O marxismo explica a maneira de pensar dos homens duma época determinada pela sua maneira de viver, isto é, pelo seu modo de produção, em vez de explicar, como faz a concepção idealista da história, a sua maneira de viver pela sua maneira de pensar. O Porto liberal e burguês, o Porto comercial e cosmopolita, o Porto da iniciativa privada e do trabalho, exigia - e continua a exigir - uma nova maneira de pensar: a Escola do Porto elaborou a filosofia adequada à modernização de Portugal e à criação de uma sociedade aberta.

Porto e Lisboa representam duas visões de Portugal completamente distintas e antagónicas: o Porto - a cidade inglesa - tem um projecto para Portugal, um projecto de desenvolvimento económico e cultural integrado e não-desigual, enquanto Lisboa - a cidade francesa ou talvez tropical - é o seu próprio projecto nacional. Nesta hora de crise nacional, a pergunta pessoana vira-se contra a própria capital: Onde está o erro estrutural de Portugal? O erro estrutural de Portugal está em Lisboa, como é evidente.Que benefícios tira o país em ser governado por uma capital que, depois de servir-se dos seus impostos e das suas escassas riquezas, o abandona à miséria, à pobreza e ao desemprego? Lisboa governa no seu próprio interesse regional: a sua política é sangrar o país para investir em si própria. Lisboa não tem um projecto para Portugal: Lisboa come e engorda, Lisboa faz do país o seu refeitório privado, Lisboa rouba e empobrece todos os portugueses, enfim Lisboa é uma puta estéril, velha, feia e gorda, incapaz de gerar um messias. Os movimentos das cruzadas não conseguiram expulsar todos os mouros de Portugal: a capital foi tomada paulatinamente pelos mouros sobreviventes que, no decorrer do tempo, se vingaram, expulsando os judeus de Portugal - o povo arqui-inimigo da mouraria - e mandando liquidar Francisco Sá Carneiro - o seu arqui-inimigo portuense. Lisboa é uma vagabunda de pernas abertas ao mundo, verdadeiramente insaciável na sua ganância estúpida e na sua vaidade saloia, que, no momento presente, quer atrair novos clientes, deslocalizando a organização de Red Bull Air Race do Porto para a capital e ligando-se a Madrid pelo TGV e ao mundo do turismo sexual pela construção de um novo aeroporto. Além de ser invejosa, mentirosa, desleal e falsa, Lisboa da mouraria é avessa ao espírito ocidental e à inteligência e, como tal, é uma cidade asiática que, após ter perdido o império colonial, se comporta como uma espécie de Estado asteca, controlado por uma teia corrupta e intriguista de burocratas e de colarinhos-brancos que gera a colecta de impostos e os fundos comunitários, de modo a garantir a manutenção dos seus próprios privilégios em detrimento do interesse nacional.

Karl Wittfogel analisou a sociedade asiática, articulando a noção liberal de despotismo oriental e a noção marxista de modo de produção asiático. A tese fundamental de Wittfogel afirma a existência de formas pré-industriais de sistemas de Estado totalitário. As formas de Estado despótico - o despotismo oriental de Locke e de Montesquieu - surgiram, no passado remoto, por causa da necessidade de controlar os recursos hidráulicos e o sistema da agricultura de irrigação. O despotismo oriental é uma forma dedominação total, cuja essência reside no controle burocrático e administrativo de todas as instituições e actividades sociais, económicas, jurídico-políticas e culturais. A forma de governo predominante é altamente centralizada, burocrática e arbitrária: a burocracia não só calcula e coordena, como também comanda todas as actividades sociais, bloqueando o surgimento na sociedade civil de associações e de grupos sociais independentes que possam limitar e contrair o poder político. Nas sociedades asiáticas, entre as quais podemos integrar o centralismo lisboeta, as classes dirigentes - e os seus partidos políticos - são completamente fechadas e a burocracia instalada monopoliza o acesso aos meios de administração e aos centros de decisão. Este controle monopolistados aparelhos de Estado, tanto dos repressivos como dos ideológicos, públicos ou privados, significa um monopólio do poder social real - político, jurídico, económico e ideológico, que não decorre da propriedade privada, mas do acesso aos meios burocráticos de controle centralizado e de apropriação corrupta dos bens públicos. A sociedade asiática constitui um sistema sob controle total de um staff administrativo - as classes dirigentes -, que existe por causa do sistema de Estado.
Alguns historiadores lisboetas lamentam a inexistência de liberalismo em Portugal, mas este lamento só é verdadeiro quando se falsifica a História de Portugal, identificando-a com a História de Lisboa: a capital de Portugal foi sempre uma feroz adversária do liberalismo, da democracia e da iniciativa privada. Graças ao Tratado de Methwen, o Porto encheu-se de ingleses, operando-se uma infiltração do carácter britânico sobre o portuense, através das relações comerciais, do contacto social e da transfusão de sangue(casamentos entre portuenses e ingleses). O Porto tornou-se uma cidade inglesa, isto é, uma cidade liberal e burguesa: «os burgueses do Porto acostumaram-se a fazer educar seus filhos na Inglaterra, o cultivo da língua inglesa foi exigido aos empregados do comércio e a imitação portuguesa do tipo britânico prolongou-se até às exterioridades do vestuário, aos gostos, às minuciosas meticulosidades mais despercebíveis» (Sampaio Bruno). O romance Uma Família Inglesa de Júlio Dinis retrata com fidelidade esse Porto burguês e liberal, fortemente seduzido pela cultura democrática e pela literatura clássica inglesas: Júlio Dinis bebeu em Charles Dickens o elixir de filantropia que dilui nos seus romances «uma vaga tinta socialista, pela condenação dos abusos tradicionais, pelaconsciência do progresso». Consciência do progresso, isto é, do desenvolvimento económico, tecnológico e cultural, é precisamente aquilo que marca a História do Porto no contexto da História de Portugal. Quando elabora a sua teoria da formação democrática de Portugal, Jaime Cortesão - ilustre membro da Escola do Porto e o maior historiador da nacionalidade portuguesa - destaca o papel de motor do desenvolvimento económico, político e cultural desempenhado pela cidade do Porto na luta contra oatraso estrutural nacional: «Os progressos sociais correm parelhas com os da actividade económica. Onde o comércio e a indústria houverem atingido maior desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal. Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então, entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra, se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado constitui a mais bela página de toda ahistória social e urbana, em Portugal. Burgo episcopal, os seus habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias à prepotência senhorial dos bispos. À violência dos senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens do burgo responderam com violência igual».

O Porto formou-se na luta contra os abusos feudais e conseguiu prosperar em grande parte «graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duasclasses oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar», elevando-se durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à «categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado». Durante todo esse período dos três últimos quartéis do século XIV, o Porto já exibia «uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado, sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional». Jaime Cortesão lembra-nos que um dos actos de maior alcance político na história da Nação foi um tratado de comércio com a Inglaterra (1353), negociado e firmado por um burguês do Porto - Afonso Martins, em nome dos burgueses e dos mesteirais das povoações marítimas de Portugal. Este acto político mostra que o Porto já era nesse tempo a «metrópole social do Reino»: as suas classes urbanas, mau grado os abusos e opressivos privilégios do clero e da nobreza militar, tiveram um poder de iniciativa na formação política de Portugal, até porque se gerou nessas relações comerciais com a Inglaterra a aliança política que garantiu mais tarde a vitória do Mestre de Avis, que se casou com uma inglesa na Sé-Catedral do Porto e nos deu esse magnífico portuense - o Infante D. Henrique. O Porto é o pequeno Estado precursor dentro do Estado Português e, como escola política da Nação, imprimiu o rumo da evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar. O Porto foi sempre a vanguarda consciente de Portugal que liga a nossa nação ao mundo, ao Brasil e ao Norte da Europa.

Onde começa o pensamento filosófico em Portugal? Jaime Cortesão compara aquilo a que chama milagre luso ao milagre grego (Renan, John Burnet) ou mesmo ao milagre holandês: os três povos são de minúsculo volume demográfico, mas «notáveis justamente por uma cultura própria de forma urbana e laica e pela expansão geográfica». Ora, sabemos que o aparecimento da polis e o nascimento da filosofia são fenómenos intimamente ligados (Jean-Pierre Vernant): o pensamento racional é solidário das estruturas sociais e mentais das sociedades urbanas abertasO milagre luso teve o seu berço na cidade do Porto, «onde durante as lutas contra os bispos, nos séculos XIII e XIV, se formou uma democracia urbana muito afim, pelo espírito de independência, das comunas da Flandres. O Porto tornou-se, durante aqueles séculos, a grande escola deeducação política do povo português, como defensora, a ferro e fogo, das liberdades individuais e da supremacia do poder civil. Ali se formou o modelo mais perfeito dacidadania em Portugal, o cidadão do Porto, cujos direitos foram mais tarde reclamados pelas maiores cidades do Brasil e estão na base sucessiva das suas autonomias provinciais e independência de nação». O Porto foi a primeira cidade portuguesa a libertar-se do modelo de uma sociedade fechada - a cidade episcopal e feudal - e a desenvolver-se ao calor da economia burguesa e do modelo de sociedade aberta: o avanço temporal do Porto em relação à sociedade portuguesa em geral fez dele uma cidade universal e imortal que, ao longo do tempo, orienta o destino nacional como a estrela da redenção(Franz Rosenzweig) de Portugal. As origens históricas da Escola do Porto mergulham neste passado inovador da História do Porto, mas o seu aparecimento formal ocorre somente no final do século XIX como protesto contra o positivismo ladrão e corrupto predominante na capital: a Renascença Portuguesa nasceu no Porto e, como diz com tristeza Fernando Pessoa, «não poderia ter nascido senão no Porto». Acontecimentos aparentemente díspares revelam uma conexão essencial quando lidos à luz da luta portuense pela construção de uma sociedade aberta e de uma economia de mercadoliberta da tutela corrupta do Estado e dos seus altos funcionários: O Porto é a primeira - ou uma das primeiras - cidade europeia a dotar-se da instituição da Bolsa (o acordo de 1293), Lisboa expulsa os judeus de Portugal (1496) e a Escola do Porto traz de volta os nossos judeus - o seu pensamento - a Portugal, a começar pelo mais ilustre - Baruch Espinosa. A aliança comercial entre o Porto e as cidades do Norte da Europa, onde se refugiaram os judeus portugueses expulsos da pátria por uma capital "amiga" invejosa, desleal e saloia da riqueza alheia, é, simultaneamente, uma aliança política e cultural:Porto e Amesterdão são cidades gémeas de tal modo idênticas que o futuro desenvolvimento da Cidade Invicta passa pela recuperação e revitalização dessa afinidade sanguínea. Pelas Notas do Exílio, sabemos que Sampaio Bruno terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida faz claramente uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. A Kabbalah exerceu uma grande influência sobre a elaboração da filosofia da história de Sampaio Bruno, fornecendo-lhe a ideia basilar do exílio de Deus em Deus e do exílio histórico de Portugal. António Telmo cita uma texto de Gershom Scholem, substituíndo o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno e alterando em consequência certas referências: «Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas».

O jogo proposto por António Telmo capta a ideia basilar da filosofia da história de Sampaio Bruno - a ideia de exílio histórico de Portugal, mas desvirtua a filosofia portuense quando a trata como uma interpretação mística da história, como se aRenascença Portuguesa sediada no Porto estivesse desligada do renascimento político. A Kabbalah é, na sua mais pura essência, uma arma política revolucionária, e Sampaio Bruno "usa-a" para afirmar a heterodoxia do pensamento portuense e a sua dissidência política. Martin Buber, Franz Rosenzweig, Gershom Scholem, Leo Löwenthal, Franz Kafka, Walter Benjamin, Gustav Landauer, Ernst Bloch, Georg Lukács e Erich Fromm fizeram um uso semelhante da Kabbalah e, como «não há história sem uma filosofia subjacente» (Jaime Cortesão), a filosofia destes pensadores, bem como a de Sampaio Bruno, visatransformar qualitativamente o mundo - quebrar o exílio histórico de Portugal, o exílio da humanidade e o exílio interior no qual gemem todas as criaturasO Brasil Mental de Sampaio Bruno não é somente uma crítica do positivismo brasileiro - esse catolicismo sem Deus, mas também e fundamentalmente uma crítica do positivismo português: a amizade pessoal entre Sampaio Bruno e Teófilo Braga e a confraternidade republicana não podem encobrir a ruptura da Escola do Porto com a ortodoxia positivista lisboeta. O positivismo lisboeta é pensamento gordo, no sentido de se acomodar à realidade social vigente, liquidando o desejo de a transcender e o desespero que ela suscita nos portugueses. Contra o pensamento satisfeito com a realidade estabelecida que se perpetua nas figuras lisboetas pardacentas da economia neoliberal - os amigos dosgrandes investimentos públicos em Lisboa, a Escola do Porto, em especial GuerraJunqueiro, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, retoma oevolucionismo, imprimindo-lhe uma valência política que visa libertar a natureza (dimensão ecológica), o homem (dimensão antropológica universal) e a sociedade (dimensão social e política) da dominação do mal do mundo. Quando apresenta o marxismo no final da sua obra O Brasil Mental, Sampaio Bruno reconhece a sua dívida para com a dialéctica hegeliana: Hegel fez da filosofia um factor histórico concreto e trouxe a história à filosofia. No seu elemento estritamente português, a filosofia da história elaborada pelos ilustres portuenses é uma filosofia da esperança histórica de Portugal: o Encoberto, o Desejado, não é nem um príncipe predestinado nem mesmo um povo, mas o próprio Homem chamado a salvar Deus, os seus semelhantes, a natureza e as suas criaturas (Sampaio Bruno). Pela sua longa história democrática e pelo seu pensamento profundo e sério, o Porto que deu o nome a Portugal - conforme diz o Hino do FCPorto - guarda a memória de Portugal, zela pelo bom nome de Portugal e sonha com o futuro novo de Portugal. Em reconhecimento agradecido pela lealdade portuense à causa da liberdade, D. Pedro IV de Portugal - e Pedro I do Brasil - doou o seu coração à cidade do Porto, e D. Maria II, sendo ministro Almeida Garrett, atribuiu-lhe oficialmente a divisa «Antiga, muito nobre e sempre leal e invicta Cidade do Porto».

Igor Sousa

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