«O aspecto moral da segunda cidade do país pouco se tem analisado; sobre ele declara-se, favorável ou hostilmente. /O Porto divergiu de todo o tempo, nos sentimentos, no modo de pensar, nos hábitos de vida, do tipo exibido, como modelo, pela capital do país. Cioso da sua autonomia, existe entre o Porto e Lisboa uma velha rivalidade. /Como se verifica por toda a parte, mercê da benignidade do seu céu, normalmente azul, e do seu clima docemente temperado, o autóctone do sul é um homem de rua, falador, vivo, pouco tenaz; de carácter suave mas frouxo, ele é naturalmente propenso a viver mais do exterior, respirando abundantemente das circunstâncias ambientes, preso ao conjunto das pessoas pelos laços de uma solidariedade que o convívio intensifica. No norte, os longos invernos, as persistentes chuvas, a tristeza das cidades enlameadas não tornam fácil o conceito de Diderot: C'est beau, la rue. O carácter enrijece na disciplina da inospitalidade da natureza e a vida de família ganha na proporção em que os hábitos de rua se obliteram e deperecem. /A comprovação histórica verifica a indução, quando assinala na sinceridade das impressões dos viajantes, ainda os mais recentes, como Ch. de Mazade para Lisboa e Olivier Merson para o Porto, que a primeira destas duas cidades é uma cidade francesa e a segunda uma cidade inglesa». (Sampaio Bruno)
Quando afirma que
a Renascença
Portuguesa não poderia
ter nascido senão no Porto, Fernando Pessoa está a reconhecer a superioridade
intelectual dos portuenses em relação aos sulistas, dando razão à lei
estabelecida por Oliveira Martins: o embate docarácter do norte, representado no Porto, com o carácter do sul, simbolizado em Lisboa, é explicado a partir de
variedades de tipo étnico. Portugal é um país etnicamente dividido e a sua história pode ser
reduzida a um confronto étnico entre o tipo celta do Norte e a etnia mourisca
do Sul. E este
confronto tem sido vencido por Lisboa que, através da centralização despótica do poder
político, coloniza todo o
território nacional, sacando-lhe todas as riquezas que canaliza para a capital
e tirando-lhe todas as oportunidades de desenvolvimento económico e cultural. A
história de Portugal vista como história da centralização lisboeta atinge o seu ponto culminante depois do 25 de Abril: o regime fascista usou o Benfica para
colonizar as mentes dos portugueses, dando-lhes a ilusão de uma coesão nacional
inexistente, mas o regime democrático - sobretudo com os governos de Cavaco
Silva - deslocalizou todo o poder económico, financeiro, comunicacional e
cultural do país para a capital, criando as condições necessárias para a crise
profunda que vivemos no momento presente. Sampaio Bruno não acolhe cabalmente a tese de Oliveira Martins,
preferindo justificar a cisão nacional a partir de
diferenças económicas - o Porto burguês e liberal - e climáticas, tal como já tinha sido feito por
Montesquieu: a inospitalidade
da natureza atiça o desenvolvimento intelectual da mente portuense e enrijece o
corpo para a luta de vida ou de morte (Hegel) contra o centralismo canibal
lisboeta.
Heródoto,
Aristóteles, Montesquieu e Jean Bodin já tinham insistido na influência directa
do clima nos comportamentos humanos: «O grande calor debilita a força e a
coragem dos homens, enquanto nos climas frios existe uma certa força do corpo e
do espírito que torna os homens capazes de acções duradouras, difíceis, grandes
e audaciosas». Montesquieu conclui que a cobardia dos povos dos climas quentes
os torna escravos, enquanto a coragem dos povos dos climas frios os mantém
livres. A servidão
civil está,
portanto, ligada ao clima: «Os homens (dos climas quentes) só são levados a
executar tarefas penosas pelo medo do castigo». O clima frio conduz à liberdade
e o clima quente à servidão. Na peugada de Bodin, Sampaio Bruno considera que a
inospitabilidade da natureza é compensada pelo aperfeiçoamento das faculdades
mentais e cognitivas superiores: os homens dos climas frios vivem mais da
interioridade do que da exterioridade. O recolhimento interior aguça o
desenvolvimento do espírito. A oposição entre o Norte e o Sul de Portugal converte-se assim numa
oposição entre o homem
interior e o homem exterior. Sampaio Bruno recorre à arquitectura para
explicar estadiferença
de carácter: a remodelação de
Lisboa pelo Marquês de Pombal - uma iniciativa do Estado - uniformizou as
edificações em andares, promovendo a prosmicuidade de uma escada comum e tornando de tal modo o domicilio odioso que
os seus habitantes são levados a preferir a rua. O homem exterior é o homem da
rua que, tendo «o dia garantido pela sinecura do emprego público», tende a ser
imprevidente e frouxo. A vida
fácil do lisboeta, garantida pelo emprego público e pela iniciativa do Estado,
conduz à regressão cognitiva e à atrofia dos órgãos mentais. Sampaio Bruno apreende um conceito
bio-antropológico fundamental: o homem exterior desenvolve uma intolerância para com o desprazer que induz a perda da capacidade de empreender
trabalhos difíceis e o desenvolvimento da exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam. A
necessidade incoercível de satisfação converte o homem exterior em presa fácil
dos produtores e das empresas comerciais: o homem exterior é umconsumidor que não tem consciência do facto de ser
escravo das compras a
crédito e o seu estilo
de vida é capturado pelo tédio mortal. No Porto nada
disto sucedia no tempo de Sampaio Bruno, porque na Cidade Invicta o pão tinha
de «ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio»: o estímulo da iniciativa do portuense era aguçado pelas actividades
comerciais e as eventualidades da hora seguinte redobravam «o espírito sobre si
mesmo, imprimindo ao carácter seriedade e dando-lhe ao mesmo tempo
maleabilidade e resistência». A análise do carácter do Norte e do carácter do
Sul realizada por Sampaio Bruno enquadra-se no âmbito da interpretação económica da história fundada por Karl Marx: Sampaio Bruno
sintetiza-a neste preceito irremediável -Primum vivere, deinde philosophari. O homem precisa de comer antes de filosofar: a compreensão de toda a
superstrutura das instituições políticas e jurídicas exige o estudo da
estrutura económica. O marxismo explica a maneira de pensar dos homens duma
época determinada pela sua maneira de viver, isto é, pelo seu modo de produção, em vez de explicar, como faz a concepção idealista da história, a sua maneira de viver pela sua maneira de
pensar. O Porto
liberal e burguês, o Porto comercial e cosmopolita, o Porto da iniciativa
privada e do trabalho, exigia - e continua a exigir - uma nova maneira de
pensar: a Escola do Porto elaborou a
filosofia adequada à modernização de Portugal e à criação de uma sociedade
aberta.
Porto e Lisboa representam
duas visões de
Portugal completamente
distintas e antagónicas: o Porto - a cidade inglesa - tem um projecto para Portugal, um projecto
de desenvolvimento económico e cultural integrado e não-desigual, enquanto
Lisboa - a cidade francesa ou talvez tropical - é o seu próprio projecto
nacional. Nesta hora de
crise nacional, a pergunta pessoana vira-se contra a própria capital: Onde está
o erro estrutural de Portugal? O erro estrutural de Portugal está em Lisboa, como é evidente.Que benefícios tira o país em ser governado por uma
capital que, depois de servir-se dos seus impostos e das suas escassas
riquezas, o abandona à miséria, à pobreza e ao desemprego? Lisboa governa no seu próprio
interesse regional: a sua política é sangrar o país para investir em si
própria. Lisboa não tem
um projecto para Portugal: Lisboa come e engorda, Lisboa faz do país o seu
refeitório privado, Lisboa rouba e empobrece todos os portugueses, enfim Lisboa
é uma puta estéril, velha, feia e gorda, incapaz de gerar um messias. Os movimentos das cruzadas não conseguiram expulsar todos os mouros de
Portugal: a capital foi tomada paulatinamente pelos mouros sobreviventes que,
no decorrer do tempo, se vingaram, expulsando os judeus de Portugal - o povo
arqui-inimigo da mouraria - e mandando liquidar Francisco Sá Carneiro - o seu
arqui-inimigo portuense. Lisboa é uma vagabunda de pernas abertas ao mundo,
verdadeiramente insaciável na sua ganância estúpida e na sua vaidade saloia, que, no momento presente, quer atrair novos
clientes, deslocalizando a organização de Red Bull Air Race do Porto para a capital e ligando-se a Madrid
pelo TGV e ao mundo do
turismo sexual pela
construção de um novo aeroporto. Além de ser invejosa, mentirosa, desleal e
falsa, Lisboa da mouraria é avessa ao espírito ocidental e à inteligência e,
como tal, é uma cidade asiática que, após ter perdido o império colonial, se
comporta como uma espécie de Estado asteca, controlado por uma
teia corrupta e intriguista de burocratas e de colarinhos-brancos que gera a
colecta de impostos e os fundos comunitários, de modo a garantir a manutenção
dos seus próprios privilégios em detrimento do interesse nacional.
Karl Wittfogel
analisou a sociedade asiática, articulando a noção liberal de despotismo oriental e a noção marxista de modo de produção asiático. A tese fundamental de Wittfogel afirma a
existência de formas pré-industriais de sistemas de Estado totalitário. As formas de Estado despótico - o despotismo
oriental de Locke e de Montesquieu - surgiram, no passado remoto, por causa da
necessidade de controlar os recursos hidráulicos e o sistema da agricultura de
irrigação. O despotismo oriental é uma forma dedominação total, cuja essência reside no controle burocrático e administrativo de todas as instituições e actividades
sociais, económicas, jurídico-políticas e culturais. A forma de governo
predominante é altamente centralizada, burocrática e arbitrária: a burocracia
não só calcula e coordena, como também comanda todas as actividades sociais,
bloqueando o surgimento na sociedade civil de associações e de grupos sociais
independentes que possam limitar e contrair o poder político. Nas sociedades
asiáticas, entre as quais podemos integrar o centralismo lisboeta, as classes dirigentes - e os seus partidos políticos - são
completamente fechadas e a burocracia instalada monopoliza o acesso aos meios
de administração e aos centros de decisão. Este controle monopolistados aparelhos de Estado, tanto dos repressivos como
dos ideológicos, públicos ou privados, significa um monopólio do poder social real - político, jurídico, económico e ideológico,
que não decorre da propriedade privada, mas do acesso aos meios burocráticos de
controle centralizado e de apropriação corrupta dos bens públicos. A sociedade
asiática constitui um sistema sob controle total de um staff administrativo - as classes dirigentes -, que
existe por causa do sistema de Estado.
Alguns historiadores
lisboetas lamentam a inexistência de liberalismo em Portugal, mas este lamento só é verdadeiro
quando se falsifica a História
de Portugal, identificando-a
com a História de Lisboa: a capital de Portugal foi sempre uma feroz adversária
do liberalismo, da democracia e da iniciativa privada. Graças ao Tratado de
Methwen, o Porto encheu-se de ingleses, operando-se uma infiltração do carácter britânico sobre o portuense, através das relações
comerciais, do contacto social e da transfusão de sangue(casamentos
entre portuenses e ingleses). O Porto tornou-se uma cidade inglesa, isto é, uma
cidade liberal e burguesa: «os burgueses do Porto acostumaram-se a fazer educar
seus filhos na Inglaterra, o cultivo da língua inglesa foi exigido aos
empregados do comércio e a imitação portuguesa do tipo britânico prolongou-se
até às exterioridades do vestuário, aos gostos, às minuciosas meticulosidades
mais despercebíveis» (Sampaio Bruno). O romance Uma Família Inglesa de Júlio Dinis retrata com fidelidade esse Porto
burguês e liberal, fortemente seduzido pela cultura democrática e pela
literatura clássica inglesas: Júlio Dinis bebeu em Charles Dickens o elixir de
filantropia que dilui nos seus romances «uma vaga tinta socialista, pela
condenação dos abusos tradicionais, pelaconsciência do progresso». Consciência do progresso, isto é, do desenvolvimento económico,
tecnológico e cultural, é precisamente aquilo que marca a História do Porto no
contexto da História de Portugal. Quando elabora a sua teoria da formação democrática de
Portugal, Jaime Cortesão -
ilustre membro da Escola do Porto e o maior historiador da nacionalidade
portuguesa - destaca o papel de motor do desenvolvimento económico, político e
cultural desempenhado pela cidade do Porto na luta contra oatraso estrutural nacional: «Os progressos sociais correm parelhas com os da
actividade económica. Onde o comércio e a indústria houverem atingido maior
desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade
Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal.
Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição
geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do
País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os
representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o
restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro
qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então,
entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do
Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude
labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra,
se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado
constitui a mais bela página de toda ahistória social e urbana, em Portugal. Burgo
episcopal, os seus
habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do
mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou
séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias
à prepotência
senhorial dos bispos. À violência dos
senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio
episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens
do burgo responderam com violência igual».
O Porto formou-se na
luta contra os abusos
feudais e conseguiu
prosperar em grande parte «graças à acérrima firmeza com que soube defender-se
da parasitagem das duasclasses
oligárquicas: o alto clero e a
nobreza militar», elevando-se durante a Idade Média, como outros grandes burgos
comerciais da Europa, à «categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado». Durante todo esse período dos três últimos quartéis do século XIV, o
Porto já exibia «uma forte
independência, não só em relação
às outras classes, mas ao próprio Estado, sem que aliás tivesse constituído um
elemento dissolvente em relação à unidade nacional». Jaime Cortesão lembra-nos
que um dos actos de maior alcance político na história da Nação foi um tratado
de comércio com a Inglaterra (1353), negociado e firmado por um burguês do
Porto - Afonso Martins, em nome dos burgueses e dos mesteirais das povoações
marítimas de Portugal. Este acto político mostra que o Porto já era nesse tempo
a «metrópole
social do Reino»: as suas classes
urbanas, mau grado os abusos e opressivos privilégios do clero e da nobreza
militar, tiveram um poder de iniciativa na formação política de Portugal, até porque se gerou nessas relações comerciais
com a Inglaterra a aliança
política que garantiu
mais tarde a vitória do Mestre de Avis, que se casou com uma inglesa na
Sé-Catedral do Porto e nos deu esse magnífico portuense - o Infante D.
Henrique. O Porto é o pequeno Estado precursor dentro do Estado Português e,
como escola
política da Nação, imprimiu o rumo da
evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar. O Porto foi sempre a vanguarda
consciente de Portugal que liga a nossa nação ao mundo, ao Brasil e ao Norte da
Europa.
Onde começa o pensamento
filosófico em Portugal? Jaime
Cortesão compara aquilo a que chama milagre luso ao milagre grego (Renan, John Burnet) ou mesmo ao milagre holandês: os três povos são de minúsculo volume
demográfico, mas «notáveis justamente por uma cultura própria de forma urbana e
laica e pela expansão geográfica». Ora, sabemos que o aparecimento da polis e o
nascimento da filosofia são fenómenos intimamente ligados (Jean-Pierre
Vernant): o pensamento
racional é solidário
das estruturas sociais e mentais das sociedades urbanas abertas. O milagre luso teve o seu berço na cidade do Porto, «onde durante as lutas contra os bispos, nos
séculos XIII e XIV, se formou uma democracia urbana muito
afim, pelo espírito
de independência, das comunas da
Flandres. O Porto tornou-se, durante aqueles séculos, a grande escola deeducação política do povo português, como defensora, a ferro e
fogo, das liberdades
individuais e da supremacia do poder civil. Ali se formou o modelo mais perfeito dacidadania em Portugal, o cidadão do Porto, cujos
direitos foram mais tarde reclamados pelas maiores cidades do Brasil e estão na
base sucessiva das suas autonomias provinciais e independência de nação». O
Porto foi a primeira cidade portuguesa a libertar-se do modelo de uma sociedade fechada - a cidade episcopal e feudal - e a desenvolver-se
ao calor da economia
burguesa e do modelo
de sociedade
aberta: o avanço temporal
do Porto em relação à sociedade portuguesa em geral fez dele uma cidade universal e imortal que, ao longo
do tempo, orienta o destino nacional como a estrela da redenção(Franz Rosenzweig) de Portugal. As origens históricas da Escola do Porto mergulham neste passado inovador da História
do Porto, mas o seu aparecimento formal ocorre somente no final do século XIX
como protesto contra o positivismo
ladrão e corrupto
predominante na capital: a Renascença Portuguesa nasceu no Porto e, como diz com tristeza Fernando Pessoa, «não
poderia ter nascido senão no Porto». Acontecimentos aparentemente díspares
revelam uma conexão essencial quando lidos à luz da luta portuense pela
construção de uma sociedade aberta e de uma economia de mercadoliberta da tutela corrupta do Estado e dos seus
altos funcionários: O Porto é a primeira - ou uma das primeiras - cidade
europeia a dotar-se da instituição
da Bolsa (o acordo de
1293), Lisboa expulsa os judeus de Portugal (1496) e a Escola do
Porto traz de volta os nossos judeus - o seu pensamento - a Portugal, a começar pelo mais ilustre -
Baruch Espinosa. A aliança comercial entre o Porto e as cidades do Norte da
Europa, onde se refugiaram os judeus portugueses expulsos da pátria por uma
capital "amiga" invejosa, desleal e saloia da riqueza alheia, é, simultaneamente, uma aliança política e
cultural:Porto e
Amesterdão são cidades gémeas de tal modo idênticas que o futuro
desenvolvimento da Cidade Invicta passa pela recuperação e revitalização dessa
afinidade sanguínea. Pelas Notas do Exílio, sabemos que Sampaio Bruno terá visitado a
Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida faz claramente uma alusão ao pensamento
cabalista de Isaac Lúria. A Kabbalah exerceu uma
grande influência sobre a elaboração da filosofia da história de Sampaio Bruno,
fornecendo-lhe a ideia basilar do exílio de Deus em Deus e do exílio
histórico de Portugal. António Telmo cita
uma texto de Gershom Scholem, substituíndo o nome de Isaac Lúria pelo de
Sampaio Bruno e alterando em consequência certas referências: «Em suma, podemos
considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da
redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte
os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes
símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova
ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo,
cujo fim é a reforma
messiânica, a transcensão do
mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção
espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o
exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas».
O jogo proposto por
António Telmo capta a ideia basilar da filosofia da história de Sampaio Bruno -
a ideia de exílio histórico de Portugal, mas desvirtua a filosofia portuense quando a trata como uma interpretação mística
da história, como se aRenascença
Portuguesa sediada no
Porto estivesse desligada do renascimento político. A Kabbalah é, na sua mais pura essência, uma arma política
revolucionária, e Sampaio Bruno "usa-a" para afirmar a heterodoxia do pensamento portuense e a sua dissidência política. Martin Buber, Franz Rosenzweig, Gershom Scholem,
Leo Löwenthal, Franz Kafka, Walter Benjamin, Gustav Landauer, Ernst Bloch,
Georg Lukács e Erich Fromm fizeram um uso semelhante da Kabbalah e, como «não
há história sem uma filosofia subjacente» (Jaime Cortesão), a filosofia destes
pensadores, bem como a de Sampaio Bruno, visatransformar qualitativamente o mundo - quebrar o exílio histórico de Portugal, o exílio da humanidade e o
exílio interior no qual gemem todas as criaturas. O Brasil Mental de
Sampaio Bruno não é somente uma crítica do positivismo brasileiro - esse catolicismo sem Deus, mas também e
fundamentalmente uma crítica do positivismo português: a amizade pessoal entre Sampaio Bruno e Teófilo Braga e a
confraternidade republicana não podem encobrir a ruptura da Escola do Porto com
a ortodoxia
positivista lisboeta. O positivismo
lisboeta é pensamento
gordo, no sentido de se
acomodar à realidade
social vigente, liquidando o
desejo de a transcender e o desespero que ela suscita nos portugueses. Contra
o pensamento
satisfeito com a
realidade estabelecida que se perpetua nas figuras lisboetas pardacentas
da economia
neoliberal - os amigos dosgrandes investimentos públicos em
Lisboa, a Escola do Porto,
em especial GuerraJunqueiro, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, retoma oevolucionismo, imprimindo-lhe uma valência política que visa libertar a natureza (dimensão
ecológica), o homem (dimensão antropológica universal) e a sociedade (dimensão
social e política) da dominação do mal do mundo. Quando apresenta o marxismo no
final da sua obra O Brasil
Mental, Sampaio Bruno
reconhece a sua dívida para com a dialéctica hegeliana: Hegel fez da
filosofia um factor histórico concreto e trouxe a história à filosofia. No seu
elemento estritamente português, a filosofia da história elaborada pelos
ilustres portuenses é uma filosofia da esperança histórica de Portugal: o Encoberto, o Desejado,
não é nem um príncipe predestinado nem mesmo um povo, mas o próprio Homem
chamado a salvar Deus, os seus semelhantes, a natureza e as suas criaturas (Sampaio Bruno). Pela sua longa história
democrática e pelo seu pensamento profundo e sério, o Porto que deu o nome a Portugal
- conforme diz o Hino do FCPorto - guarda a memória de Portugal, zela pelo bom
nome de Portugal e sonha com o futuro novo de Portugal. Em reconhecimento agradecido pela lealdade
portuense à causa da liberdade, D. Pedro IV de Portugal - e Pedro I do Brasil -
doou o seu coração à cidade do Porto, e D. Maria II, sendo ministro Almeida
Garrett, atribuiu-lhe oficialmente a divisa «Antiga, muito nobre e sempre leal e
invicta Cidade do Porto».
Igor Sousa
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