sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Separatismo e Descentralização

Os sistemas políticos não costumam autorizar o direito de secessão. Ao fazê-lo, deixariam de ser sistemas políticos. Passariam a ser simples associações voluntárias. Como não é essa a natureza do Estado, os agentes do Estado central reprimem com vigor as tendências separatistas que se oponham à sua hegemonia. Forçam os seus subordinados na hierarquia do Estado – chefes políticos municipais e regionais, polícias, guardas, militares, burocratas – a trabalharem sob as suas ordens. Não autorizam nenhum tentáculo local do Estado central a tornar-se independente.

Convem entender que o direito de secessão não é própriamente um direito das populações governadas, apesar de ter óbviamente consequências sobre estas. O direito de secessão é antes o direito de emancipação de determinadas autoridades políticas locais relativamente ao centro político. São determinadas autoridades políticas locais que decidem ou não emancipar-se. Não é o “povo”. O “povo” não é uma pessoa que tome decisões, é um grupo de pessoas com aspirações diferentes, e na prática com pouco controlo sobre as estruturas humanas que governam a sua terra. O que interessa ao povo, pelo menos ao povo produtivo e pacífico, não é tanto a relação dos vários corpos do Estado entre si, mas antes o conjunto de regras que as autoridades políticas, centrais ou locais, lhe fazem sofrer. Em si, o acto de secessão é irrelevante quanto aos direitos e liberdades da população.

Porém, por várias razões o liberal pode e deve defender o direito de secessão. A principal é da ordem da ética. As relações das várias pessoas que compõem o Estado entre si devem reger-se pelos mesmos princípios universais que obrigam todas as pessoas. Nomeadamente, pelo respeito da vida, da liberdade e da propriedade. Por isso, se determinados políticos locais não desejam mais submeter-se ao Estado central, deviam poder fazê-lo. Não são escravos dos políticos acima deles. Podem abandonar o seu trabalho livremente, como qualquer trabalhador o faria se quisesse. Além disso, dum ponto de vista prático, o separatismo é amigo da liberdade. É, na verdade, uma das medidas mais radicais e efectivas contra o estatismo. Mesmo que em si não mude inicialmente nada ao conjunto de leis e práticas políticas em vigor, cria incentivos poderosos para a mudança, para melhor, sobre os vários estados em presença. Para perceber quão perigoso é para o Poder, basta ver a ferocidade com que combate separatistas (“traidores!”).

Em primeiro lugar, o desejo de separação nasce frequentemente do repúdio por parte duma população local qualquer dalguma medida parasítica imposta pelo Estado central (impostos, burocracias, proibições, serviço militar,...). Ou seja, a inspiração inicial para a secessão é liberal, e o resultado da separação é a abolição de determinada lei opressiva. Além disso e sobretudo, o separatismo aumenta o número de entidades políticas independentes existentes em determinado território. Quanto mais entidades políticas diferentes existirem, maior é a competição entre elas. As pessoas passam a ter uma série de sítios diferentes para viver, acabando muito mais facilmente por “votar com os pés” quando não estão satisfeitas. Por esta razão, as várias entidades políticas passam a ter que tratar melhor os seus súbditos. Isto passa entre outras coisas por fornecer melhores serviços em troca do dinheiro cobrado sob a forma de impostos. Mas não só. A concorrência entre estados promove também uma liberalização das políticas aplicadas. Os vários estados, sendo corpos parasitas, necessitam de ovelhas para tosquiar. Não podem viver sem gente produtiva que os sustente. Do ponto de vista do bem-estar dos próprios agentes do Estado, contudo, o parasitismo pousa problema. O problema óbvio que se põe é que o parasitismo desincentiva a produção, e logo seca a fonte de rendimento do Estado. Em tempo normal, desde que não seja excessivamente cleptomaníaco, o Poder consegue manter o seu parasitismo indefinidamente. O problema dos parasitas estatais faz-se sentir quando existe na sua vizinhança corpos políticos mais liberais. Estes tendem a atrair os indivíduos mais produtivos de todas as sociedades vizinhas, visto que lhes proporcionam melhores condições para prosperar e em geral, fazerem o que querem da sua vida. E isso faz perder aos corpos políticos mais opressivos as suas fontes de rendimento, levando a um colapso doloroso da receita e, consequentemente, da despesa. A ironia da competição política é que os parasitas acabam por ter que controlar a sua guloseima, se querem manter um certo nível de vida... Mesmo sem ir até às últimas consequências, o simples facto de um corpo político saber que pode perder o controlo de determinada região numa revolta separatista age como um freio às suas acções. E quanto mais forte e abrangente for a tendência para o separatismo, quanto mais independentes forem os povos “periféricos”, menos forte será o Estado central.

O sucesso da liberdade depende em grande parte do estado da opinião pública. Depende da insubmissão das pessoas. Ora o que se percebe facilmente é que este espírito de liberdade não se manifesta simultâneamente em todo o lado. Há comunidades em que se faz sentir mais depressa e mais intensamente. Há muitas comunidades periféricas, dominadas pelo Estado central, que se opõem a movimentos separatistas por afeição à ideia de unidade política (um certo tipo de nacionalismo centralizador, portanto). Apesar de não terem nada a ganhar com isso – o que ganharia um campónio transmontano, por exemplo, em impedir um madeirense de se tornar independente?! - muitas pessoas estão presas à ideia de que quebrar a unidade do Estado é a mesma coisa do que querer destruir a nação (quando na prática a nação, o conjunto de pessoas que vivem em determinado território unidas por uma cultura comum e um certo sentido de pertença, difere do Estado, esta minoria de pessoas que domina a tal nação...). Acabam assim por favorecer o esmagar violento de quaisquer movimentos separatistas ou liberais. Ao apoiarem, nem que seja tácitamente, a repressão da liberdade de várias comunidades internas à nação, as pessoas de opinião mais centralizadora estão na realidade a dar um tiro no pé.

É nas comunidades em que a consciência da ilegitimidade e do carácter nefasto do Poder é mais forte que se vão fazer sentir mais depressa tendências separatistas. As consciências amadurecem separadamente... O separatismo permite a estas comunidades mais rebeldes dissociar-se da carneirice ou da imoralidade das comunidades menos independentes e menos morais. Evita às regiões separatistas sofrer as loucuras do Estado central – guerras, imposto, burocracias. Há que tomar consciência de que a Corte – o complexo dos políticos, activistas, interesses e intelectuais que formam a cúpula do Poder – é completamente intocável pelo argumento, por sentimentos de humanidade, e pelo bom senso. É um mundo à parte, uma bolha distanciada da realidade em que vive a maioria das pessoas. É um mundo com os seus próprios princípios, com os seus próprios códigos. É um mundo que atrai principalmente pessoas com predisposição para mandar nos outros. Não se consegue mudar este mundo do exterior, tem que ser uma pressão externa a fazê-lo. E para isso, o direito de secessão é do mais eficaz que existe.

A descentralização política evita um problema frequente nas sociedades políticas centralizadas: a recorrência de ciclos de liberalização/opressão. É possível, mesmo sem tendências separatistas, que ocorra alguma liberalização da política interior dum Estado qualquer. O problema é que esta liberalização, se não houver fortes travões à tendência natural do Estado em crescer, será passageira. Pode-se pensar, por exemplo, nas liberalizações económicas do século XIX, na Europa, que acabaram por ser seguidas de experiências socialistas/comunistas um pouco por todo o lado. A descentralização política evita em grande parte esses problemas. Dificulta a tomada de controlo de sociedades extensas por parte de movimentos intervencionistas, visto que deixam de existir centros políticos poderosos. Os intervencionistas não têm “por onde pegar”, não há um Estado centralizado e forte do qual se possam apoderar. Mesmo que consigam influenciar a política de algum corpo político, só conseguem fazer o mal numa pequena dimensão local. Se os movimentos revolucionários que destruíram as monarquias absolutistas do Antigo Regime tivessem, ao longo do século XIX, lutado por desintegrar os vários Estados europeus, por dentro, partindo-os em mil cacos, não teriam acontecido os horrores do século XX (etno-nacionalismos, guerras totais, campos de concentração, comunismos, colonialismo,...). Pequenos estados em concorrência entre si não teriam tido ao seu dispôr os meios humanos, institucionais e financeiros necessários para aplicar crimes em grande escala como o foram os do século XX.

Há que promover movimentos separatistas. Os diversos Estados nacionais europeus deviam saír da Europa (um monstro burocrático que crescerá implacávelmente enquanto nada for feito para combatê-lo). As colónias da Madeira e dos Açores, assim como as câmaras municipais de todo o país, deviam sair de baixo da autoridade de Lisboa (esta cidade, quanto a ela, reverteria para o estatuto de modesta cidade-Estado, como o Vaticano). E ao nível local, as freguesias deviam emancipar-se da tutela das câmaras municipais. Quanto mais perto do indivíduo ou da associação de bairro estiver a capacidade de decisão, melhor. Micro-Estados como o Mónaco, o Liechtenstein, o Bahreïn, Andorra, San Marino, Malta ou o Vaticano mostram que estas ideias não são de todo fantasistas. Também não há que ter medo de “separatismos dentro de separatismos”. Se por exemplo, por alguma razão, o governo regional dos Açores não estiver disposto a emancipar-se, as ilhas que o compõem não deviam hesitar em tornar-se independentes por si (Terceira, Pico, etc...): o espírito de liberdade não desabrocha ao mesmo tempo em todo o sítio. Outro caso a considerar é o separatismo local sem secessão nacional. Pode-se imaginar que alguma freguesia se emancipe da câmara sob a autoridade da qual vive, passando a formar ela própria uma câmara municipal sob a autoridade do Estado português. Isto, sem ser o ideal, permite combater autarcas locais abusivos. Finalmente, há que não ter medo de pedir descentralizações de competências para o nível local (inclusivamente competências coercivas, como o imposto ou as burocracias, para fomentar a concorrência entre localidades).

Tudo isto favoreceria radicalmente a liberdade. 




(excerto de post publicado em O Porco Capitalista)

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